Vilania e malandragem

Um jornal darth_vaderpaulista lançou mão do termo ‘vilão’ para definir o papel do radar no imaginário do motorista paulistano. Segundo os dicionários, vilão representa algo (ou alguém) ruim, capaz de fazer mal aos outros. O radar, convenhamos, o máximo que faz é ‘assaltar’ o bolso de motoristas incautos, sendo que a expressiva maioria deles, como as estatísticas demonstram, contumazes infratores das leis de trânsito. Alçados à condição de “vítimas”, tais infratores cometem seus crimes sem punições severas, sem relação de reciprocidade com a extensão do mal perpetrado, a não ser a famigerada multa.

Esta inversão de valores, que tem acolhida não somente na mídia, como até mesmo em candidatos a cargos eletivos, guarda uma estranha relação com a mortandade no trânsito. Nos mesmos jornais que divulgam a “vilania dos radares” pode-se ler, com viés de pretensa simpatia, a denúncia à letargia da justiça quando o assunto são crimes de morte produzidos por motoristas irresponsáveis. Não à toa, menos ainda por acaso, os jornais adotam sempre uma postura de condenação às multas, reverberando uma desinformada sociedade que repele juntar a tragédia nas ruas à leniência com os infratores.

Um exemplo típico disto é o caso de Vitor Gurman (apenas para exemplo, já que há uma infinidade de casos semelhantes). Como contam os jornais (os mesmos que apontam o dedo para o “radar-vilão”) dia 23 faz cinco anos que o administrador Vitor Gurman foi atropelado na calçada da Rua Natingui, na Vila Madalena, bairro de São Paulo. Um Land Rover, que trafegava em alta velocidade, além de atropelar e matar Vitor, chegou a derrubar um poste, tal a velocidade que trafegava em bairro residencial. A autora do crime, como punição, teve a carteira cassada e ficou proibida de sair à noite, além de ter de pagar um valor à família. Responda: é justo? A resposta unânime é não.

A própria imprensa relata com regular frequência, numa velada simpatia pelas vítimas dos crimes de trânsito, que casos semelhantes ao de Gurman “fazem fila para serem julgados”. Mas numa inversão de valores, ao mesmo tempo em que denunciam tais crimes, condenam justamente uma das maneiras de se coibir que eles aconteçam: a fiscalização ostensiva.

Radares apenas registram infrações. A tese da “pegadinha”, geralmente usada para pespegar nos órgãos públicos a pecha de “arrecadadores de multas” é no mínimo desonesta. Cabe aqui repetir o que já foi dito no editorial passado: 67% dos envolvidos em acidentes fatais (que mataram pessoas) possuíam multas por graves desrespeitos ao trânsito (e à cidade), como excesso de velocidade e avanço de sinal. Pode-se até errar no varejo, mas é certo o acerto no atacado. Quando o caso envolve a prevenção de vidas, o balanço será sempre positivo.

Outra balela é a de insistir em “campanhas de educação” em lugar das punições, como se estas, de per si, fossem capazes de resolver boa parte de um problema que é muito mais complexo, e que mistura, em doses diversas, poderosos interesses que começam nas montadoras com suas caríssimas e envolventes campanhas publicitárias.

O que já ficou evidente é que há uma simpatia envergonhada com relação aos infratores de trânsito, decorrente de uma cultura rodoviarista que resiste a admitir que os tempos mudaram… A pressão por maiores velocidades nas marginais Pinheiros e Tietê, em São Paulo, é um exemplo disso. A mídia parece esquecer, quando lhe convém, que medidas de redução de velocidade são reconhecidamente no mundo todo benéficas à sociedade. As matérias sobre este tema, antes de discutir sua eficácia em relação à defesa da vida, prefere buscar as “vítimas” de uma propalada “sanha arrecadadora”.

De maneira malandra reportagens separam as reais vítimas do trânsito nessa celeuma toda. É como se mortes provocadas por motoristas irresponsáveis fossem “acidentes”, palavrinha que retira totalmente qualquer culpabilidade do infrator. Afinal, acidentes acontecem…

Como em muitas cidades que enfrentaram com vigor a mortandade no trânsito, Nova York, ao lançar seu programa Vision Zero, deu o recado curto e grosso ao separar as palavras “acidente” e “trânsito”. Numa tradução livre: “a cidade de Nova York não vai mais tratar crimes de trânsito como meros “acidentes”, mas sim como incidentes que podem ser, sim, perfeitamente previstos. Nenhum nível de fatalidade nas ruas da cidade é inevitável, nem aceitável”.

Quem anda a uma velocidade acima do permitido sabe, de antemão, que os riscos crescem em elevada proporção. Para cada 10% acima da velocidade máxima permitida, a possibilidade dos motoristas causarem mortes em acidentes aumenta em 54%. Quem acelera sabe que a cada quilômetro a mais cresce exponencialmente a chance da tragédia.

A sociedade precisa escolher qual vilão quer condenar. Se a multa que fere o bolso, ou se o motorista irresponsável que mata pessoas; se as medidas que restringem as loucuras e irresponsabilidades nas ruas e estradas, ou as pessoas que, podendo optar por segurança, escolhem o caminho sem volta da direção irresponsável.

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